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A Inexigibilidade e o Novo Paradigma da Intelectualidade: por que os serviços contábeis precisam ser revalorizados diante da era da IA


1. Introdução: uma provocação necessária

O artigo 74, inciso III, alínea “c”, da Lei nº 14.133/2021 — a nova Lei de Licitações e Contratos — prevê a inexigibilidade de licitação para a contratação de serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual, como os prestados por advogados, consultores, auditores e outros profissionais.

Historicamente, a jurisprudência tem reconhecido com facilidade os serviços jurídicos como de natureza predominantemente intelectual, enquanto os serviços contábeis — ainda que complexos e de alto conteúdo técnico — são frequentemente enquadrados como operacionais ou de execução rotineira.

Mas esse entendimento começa a se mostrar incoerente diante da nova realidade tecnológica, especialmente com o avanço das Inteligências Artificiais (IAs).


2. O paradoxo jurídico diante da Inteligência Artificial

Hoje, as IAs já são capazes de redigir petições, estruturar contratos, elaborar pareceres e até argumentar juridicamente com base em grandes bases de dados. Ou seja, as atividades jurídicas consideradas “intelectuais” pela legislação já são, em sua maioria, reproduzíveis por máquinas.

Enquanto isso, os serviços contábeis, especialmente os vinculados à Contabilidade Aplicada ao Setor Público (CASP), continuam exigindo interpretação humana, julgamento técnico e domínio de normas e manuais que regem a contabilidade pública. O Siconfi, por si só, é um sistema que recebe e consolida dados contábeis, orçamentários e fiscais de entidades federativas.

No entanto, para sua correta utilização, é necessário domínio de diversos instrumentos técnicos: o MCASP, o MDF, os Guias de Validação, o PCASP e regras de layouts e consistência que mudam frequentemente. Em outras palavras, o sistema automatiza parte do processo, mas não elimina a necessidade de ajuste, análise, interpretação e correção humanas diante de erros de validação, mudanças de layout ou inconsistências de dados.

A execução dessas atividades envolve:

  • Análise e consolidação de dados contábeis sob múltiplas óticas (orçamentária, patrimonial, fiscal e de gestão);

  • Interpretação de inconsistências e erros sistêmicos;

  • Correções baseadas em normas específicas e atualizações do Tesouro Nacional;

  • Aplicação de julgamento profissional para assegurar conformidade.

São tarefas que não podem ser automatizadas integralmente nem sequer por IA, pois dependem de compreensão de contexto, normas locais e senso crítico contábil.


3. A incoerência conceitual do sistema

O raciocínio jurídico atual mantém um paradoxo:

Aceita-se como serviço predominantemente intelectual a advocacia — cuja atividade é passível de automatização —mas nega-se esse status à contabilidade pública — cuja execução exige raciocínio técnico, normativo e interpretativo intransferível.

Essa incoerência não apenas fere o princípio da isonomia profissional, mas também contraria o avanço técnico e social da administração pública, que exige profissionais contábeis altamente especializados para garantir a fidedignidade das informações enviadas aos órgãos de controle.

Em termos práticos, a elaboração e envio de demonstrativos contábeis ao Siconfi, por exemplo, envolve operações de alto grau intelectual, que incluem interpretação de saldos, reconciliação de contas, ajustes normativos e análise de cruzamentos fiscais — um processo que transcende a execução mecânica e demanda competência técnica superior.

Além do Siconfi, o contador público também é responsável pela alimentação e transmissão de dados em outros sistemas essenciais, como o SIOPE (Educação) e o SIOPS (Saúde), que integram o ciclo de prestação de contas dos municípios.

Esses sistemas — embora contem com ferramentas de automação, validação e cruzamentos automáticos de dados — não eliminam a necessidade da análise e da interpretação humanas.Cada um possui layouts específicos, regras de consistência próprias e validações normativas que variam constantemente ao longo do exercício.

O contador precisa adequar manualmente os dados, interpretar mensagens de erro e ajustar lançamentos para atender às exigências técnicas e legais de cada período.Além disso, mudanças de layout, atualizações de campos obrigatórios e críticas do sistema exigem ações interpretativas complexas, que vão muito além do simples uso das automações.

Ou seja, as automações existem para apoiar, não substituir o julgamento técnico. O contador público atua, simultaneamente, como profissional contábil, analista de sistemas e intérprete normativo, garantindo que os dados enviados aos órgãos federais sejam coerentes, íntegros e fidedignos.

Esse cenário evidencia que, apesar da digitalização e das rotinas automatizadas, as atividades contábeis públicas permanecem essencialmente intelectuais — dependentes da capacidade humana de interpretar, corrigir e contextualizar as informações produzidas pelos próprios sistemas.

Integração com o SIAFIC: o coração da contabilidade pública

Além desses sistemas, há o SIAFIC (Sistema Único e Integrado de Execução Orçamentária, Administração Financeira, Contabilidade e Controle), criado pelo Decreto nº 10.540/2020.Ele é o núcleo onde são geradas e registradas as informações contábeis e orçamentárias dos entes federados — integrando os módulos de receita, despesa, contabilidade e controle interno.

O SIAFIC tem como objetivo assegurar padrões de qualidade, segurança e integração na escrituração contábil e fiscal dos entes públicos.Para isso, o contador precisa compreender profundamente sua estrutura, funcionalidades e integração com outros sistemas estruturantes, como o Siconfi, SIOPE e SIOPS.

Essa integração é complexa: o contador deve entender os fluxos de informação entre os sistemas, diagnosticar falhas de compatibilidade, ajustar cadastros, conciliar dados e garantir que as informações enviadas por meio do SIAFIC estejam adequadas às normas do Tesouro Nacional.Além disso, qualquer alteração de layout ou parametrização no SIAFIC afeta diretamente os envios ao Siconfi, SIOPE e SIOPS, exigindo monitoramento constante e capacidade técnica para adequar processos.

Em outras palavras, o contador precisa dominar o ecossistema integrado de sistemas públicos, atuando como especialista em contabilidade, tecnologia e legislação simultaneamente — o que reforça, ainda mais, o caráter intelectual, singular e técnico da sua atividade.

Além disso, é preciso observar que diversos serviços aparentemente corriqueiros na contabilidade privada assumem caráter singular na contabilidade pública.Um exemplo emblemático é o tratamento das retenções do FPM (Fundo de Participação dos Municípios) e a gestão dos dossiês específicos junto à Receita Federal.Embora o acesso ocorra pelo mesmo portal utilizado pelos contadores privados, as prefeituras possuem rotinas próprias, relatórios diferenciados, parametrizações exclusivas e particularidades normativas que somente contadores públicos capacitados compreendem integralmente.

Portanto, não se trata de mera replicação de tarefas da contabilidade privada, mas de execução técnica em um ambiente público altamente regulado, no qual as interpretações, ajustes e conformidades legais exigem um nível de discernimento que caracteriza a atividade como predominantemente intelectual.


4. A necessária revisão interpretativa

Com o advento da IA e o impacto direto nas profissões intelectuais, é urgente revisar o entendimento do que se considera “serviço técnico especializado de natureza predominantemente intelectual”.

O artigo 74, III, “c”, deve ser reinterpretado sob uma ótica contemporânea, considerando:

  • A natureza insubstituível da análise contábil profissional na gestão pública;

  • A impossibilidade de automatização "plena" das atividades contábeis específicas (como as do Siconfi, SIOPE e SIOPS);

  • E o princípio da razoabilidade, que deve orientar o reconhecimento da inexigibilidade para contratações contábeis que envolvam interpretação e julgamento técnico.

A própria Lei nº 14.133/2021, ao mencionar a inexigibilidade em razão da “natureza singular do objeto e notória especialização do contratado”, não limita a aplicação a determinadas categorias profissionais. O que se exige é singularidade e expertise comprovada, condições que os serviços contábeis públicos atendem com plena correspondência.

Além disso, é importante reconhecer que o contador, em qualquer esfera de atuação — pública ou privada — exerce, em essência, um papel consultivo.Ele não se limita à execução de tarefas repetitivas, mas atua como intérprete da norma e orientador constante de gestores, empresários e servidores.O contador tira dúvidas, oferece soluções e emite pareceres técnicos diariamente, desempenhando um trabalho de consultoria contínua, que exige domínio conceitual, prudência e responsabilidade técnica.Essa característica reforça ainda mais a natureza predominantemente intelectual da profissão, demonstrando que a contabilidade, muito mais do que uma ciência de registros, é uma ciência de interpretação e aconselhamento.


5. Conclusão: o futuro da inexigibilidade é técnico, não apenas jurídico

A distinção entre “intelectual” e “operacional” precisa ser revista à luz das transformações tecnológicas e do papel atual da contabilidade pública. Se a advocacia — hoje amplamente assistida por IA — continua reconhecida como serviço intelectual, é incoerente excluir a contabilidade, que permanece dependente do raciocínio humano especializado.

A inexigibilidade deve proteger o conhecimento técnico autêntico, e não o prestígio histórico de uma categoria profissional. Neste novo cenário, o contador público se apresenta não apenas como executor, mas como intérprete do patrimônio e da legalidade, papel que nenhuma inteligência artificial é capaz de substituir.


6. Reflexões práticas para contadores e gestores

Para além da discussão teórica, é essencial que contadores e gestores públicos compreendam como aplicar esse novo entendimento na prática administrativa:

  1. Documente a singularidade do serviço contábil.

    Sempre que a contratação envolver elaboração, interpretação ou correção de demonstrativos Siconfi, SIOPE, SIOPS, RREO, RGF ou DCA, destaque no termo de referência o caráter intelectual e não repetitivo da atividade.

  2. Demonstre a notória especialização.

    Anexe comprovações de experiência, capacitações e conhecimentos em MCASP, MDF, SIOPE, SIOPS Sicinfi, SIAFIC e evidências de domínio técnico do contratado. Isso reforça a justificativa da inexigibilidade com base em mérito profissional e não apenas custo.

  3. Diferencie execução operacional de análise técnica.

    Atividades de digitação, importação ou coleta de dados são operacionais; já a interpretação contábil e correção de inconsistências no sistema são atos intelectuais de natureza singular.

  4. Valorize o julgamento técnico.

    O contador é o agente que traduz as normas em registros fidedignos — função que envolve interpretação, prudência e raciocínio crítico, pilares do conceito de serviço intelectual.

  5. Gestores: repensem os critérios de licitação.

    A nova realidade exige critérios qualitativos e não apenas quantitativos. A inexigibilidade, quando fundamentada, é um instrumento legítimo para garantir qualidade e precisão nas informações públicas.

Em suma, o avanço da Inteligência Artificial deve servir não para desvalorizar o conhecimento humano, mas para ressaltar as áreas em que o intelecto e a interpretação são insubstituíveis — e a contabilidade pública é uma delas.


Referências Legais e Bibliográficas

  • Lei nº 14.133/2021, art. 74, inciso III, alínea c.

  • Decreto nº 10.540/2020, que institui o SIAFIC — Sistema Único e Integrado de Execução Orçamentária, Administração Financeira e Controle.

  • Manual de Contabilidade Aplicada ao Setor Público (MCASP), Secretaria do Tesouro Nacional, 9ª edição.

  • Manual de Demonstrativos Fiscais (MDF), STN, edição vigente.

  • Guias de Validação Siconfi, Tesouro Nacional.

  • Documentos oficiais do SIOPE — FNDE / MEC.

  • Documentos oficiais do SIOPS — Ministério da Saúde.

  • Jurisprudência: TCU Acórdãos nº 2.731/2016 e nº 2.044/2020 – Plenário.

  • Secretaria do Tesouro Nacional (STN). Manual Técnico e Guia de Implantação do SIAFIC. Brasília: STN, edições 2021–2023.


🖋️ Autor: Contador André Divino da Silva



 
 
 

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